Às vezes me lembro de quando eu era humana.
Carta 001 – Estômago: dissolvida em ácido gástrico.
É tão úmido aqui dentro, na barriga da baleia que me digere de entranha em entranha. Como se eu voltasse pro útero de uma mãe, eu choro. A minha morte me proporciona, hoje, uma liberdade que eu jamais conseguiria alcançar em vida — e o azul se funde com os meus pensamentos mais vívidos. Quando eu sair desse estômago que me dissolve, eu espero poder morrer novamente, dessa vez em paz. Mas o ontem me assombra mais. Às vezes me lembro de quando eu era humana.
É um fim de tarde aleatório, e eu tomei banho após um longo dia encarando a tela do meu celular obsessivamente, como se o mistério da vida fosse se desembrulhar especialmente para mim dentro daquele pedaço de metal. Nesses últimos anos a minha vida tem sido difícil, e minha mente parece me corroer de dentro pra fora. Ela já corroeu tudo que pôde. Às vezes, quando a rotina se torna deprimente, aparecem objetos, imagens, e músicas que me lembram de você. É engraçado pensar em você.
Nós passamos um ano sentados lado a lado durante o ensino médio. Eu era insana. Você era calmo demais pra perceber que eu estava perdendo a minha cabeça lentamente, então, eu te observava assistir ao meu declínio em total distração. Você vivia na primeira fileira do meu show. Eu te enchia de conversas e questões estúpidas e egoístas, e você me olhava como se fosse a única pessoa capaz de me entender. Te perseguia pelos corredores como uma criança que se perdeu de sua mãe, e você me acolhia com todo seu instinto materno. Dois anos depois, no meu aniversário, eu me ressenti ao não receber uma mensagem sua. Nós nascemos em dias muito próximos, e enquanto eu, assombrada por uma memória, esperava ter uma desculpa meticulosa pra te enviar qualquer coisa, você se esqueceu.
Desde então, me contentei em apenas me perguntar, só de vez em quando, o que poderia ter acontecido em uma outra vida, se fôssemos outras pessoas. Gosto de criar finais diferentes para nós dois na minha cabeça. Em uma outra dimensão, por exemplo, nós seríamos eternos personagens de um Cartoon que nunca termina: As Aventuras de Um Estudante de Odontologia e Sua Escritora Amadora Tomadora de Remédios Psiquiátricos. Seríamos os nossos próprios heróis.
Em Goiás, se consegue ver o céu e suas estrelas, que na realidade são, em sua maioria, satélites. Mas são tão vívidos. Um céu cercado por uma tecnologia luminosa, e eu volto a me sentir como uma criança. Enfim me apeguei em pontos brilhantes pendurados como uma forma de não precisar encarar o fato de que as minhas amizades quebraram meu coração mais vezes que qualquer paixonite febril de adolescência.
A verdade é que eu sempre vivi relações unilaterais. As pessoas são uma tela em branco pra que eu possa projetar e despejar todas as minhas idealizações, inseguranças e complexos de superioridade. Eu consigo ser quem eu quiser pra fazer você gostar de mim, e quando perco meu controle mental sobre a sua percepção, vou embora como quem nunca veio. A única coisa que me distancia de um narcisismo cruel são as minhas grandíssimas emoções autodepreciativas e meus eternos arrependimentos. E o meu amor.
Minha grandeza também me chicoteia as costas — ela me mantém humana. Você me mantinha humilde, coisa que nada e nem ninguém havia conseguido até então. Eu nunca precisei me diminuir para caber nos seus dias. Você nunca me olhou como eles me olhavam: com um ponto de interrogação acima de suas cabeças e um tipo de dó em suas feições. Não — você era diferente daqueles que me fizeram ser o que eu sou hoje. Essa pessoa pervertida, dolorida, carente, celibata, meio vagabunda, mesquinha e infantil, não existia com você. Por algumas poucas horas eu era boa. Boa o suficiente.
E nessa tarde cercada por estímulos, você me envia uma mensagem e eu me sinto ter quinze anos de novo.
Sair do ensino médio me trouxe a mesma sensação que eu tive quando tinha doze anos de idade e vigiava a porta do banheiro para que as minhas amigas pudessem cheirar uma cocaína barata no colégio particular ultra cuidadoso do qual nossas mães pagavam caro: sozinha, perdida e em hipervigilância constante. Elas eram engraçadas, mas eram maliciosas. Eu, um fantasma, sentada no meio do banco de trás do carro de uma aspirante a socialite que não se importava comigo, e muito menos com as próprias filhas. Dormia em suas casas, fazia trabalhos, soltava frases engraçadas e sem contexto no meio das conversas, e enviava textos enormes que iam ser ignorados abrindo cada parte do meu coração sobre tudo que existia na face da Terra. Eu era como uma decoração sem funcionalidade em um lugar, que apesar de não me necessitar, me achava cômodo de ter por perto. Mas eu era algo. E ser algo me manteve contente por alguns bons anos.
Meses atrás, quando eu entrei em uma empresa de energia da minha cidade em meio a uma quase crise de ansiedade às nove da manhã, eu vi uma delas — mas essa era outra questão. Ela me conheceu tão criança e eu já era tão cruel. Tinha problemas com o pai, e devia ser a melhor pessoa que eu havia conhecido no auge dos meus sete anos de idade. Enquanto eu implorava por validação masculina durante a educação física dos garotos do ensino médio, ela me ignorava. Mais esperta do que eu. Tão loira — e ali na minha frente, continuava com a mesma cara de criança. Me abraçou e nós conversamos por alguns minutos.
Ela me contou que o resto das garotas continuavam com as suas vidas. Uma ainda criava seu filho, a outra cheirando pó, um dos garotos foi preso, o outro furtou um carro, e ela tinha começado a namorar. Eu me senti envergonhada ao pensar que absolutamente nada havia acontecido comigo desde então, além de intensos ataques de pânico e idas urgentes a terapeutas e psiquiatras. Então, excluí todas essas informações da minha breve explicação regada de desvios e que parecia implorar por uma desculpa.
Eu vivo parecendo implorar por desculpas. Eu cumprimento as pessoas como se as devesse algo de mim. Algo que elas não querem. Eu olho no fundo dos seus olhos e não consigo me conectar com nada além de uma grande auto observação social que vive de me sequestrar do momento presente. Eu carrego comigo breves comentários engraçadinhos que irão me fazer um por cento mais aceitável, ou um por cento menos desagradável. Me sento à mesa e peço a comida que se encontra do outro lado de um jeito premeditado. Saio de casa preocupada em como devo receber todos quando chegar ao destino final. Abro a janela dos meus dentes exageradamente quando ouço piadas que não considero engraçadas. Gaguejo toda a vez que a minha voz ecoa mais alto que a deles. Do lado de fora da minha casa eu não tenho interesses, nem gosto pessoal, nem uma opinião para ser ouvida. Não me reconheço nas fotos tiradas em família e enviadas em grupos do Whatsapp. Eu as olho e identifico uma outra pessoa — como se flutuasse para fora do meu próprio corpo. E assim eu vou, sendo um quase alguém. Mas eu costumava ser algo.
Todos eles continuam, e eu continuo aqui. Todos eles amam, e eu continuo aqui. Todos eles trabalham, e eu continuo aqui. Todos eles se casam, e eu continuo aqui. Todos eles namoram, e eu continuo aqui. Todos eles se mudam, e eu continuo aqui. Todos eles viajam, e eu continuo aqui. Todos eles cheiram suas carreiras, e eu continuo aqui.
Talvez eu seja o meu grande problema. Eu sou hipócrita e meus sentimentos são barulhentos. Eu posso ser negligente e grosseira, ciumenta e incapaz, mentirosa e viciada em testar, masoquista e medíocre, amorosa e ressentida. Mas sinto que cada vez mais as pessoas me consomem e me engolem — enquanto a vida faz o mesmo — e isso se torna uma luta livre de quem consegue me mastigar e me cuspir mais rápido. Eu encurto um pouco mais todas as vezes. Eles perdem dentes, minha carne é dura e tensa. E talvez exatas duas pessoas tenham me olhado com cautela durante todos esses anos de vida. Todo o resto passou por mim e se contentou com a própria história que criou.
Na noite de Halloween do ano passado estava calor. As tradições norte americanas irritam a minha mãe — elas não importam nessa cidade onde as vacas atravessam as ruas. Ainda assim, desde criança eu mantenho o ritual de assistir todos os filmes de terror possíveis nesse mês, que consequentemente, é o mês do meu aniversário. Há alguns anos atrás eu apareci em uma festa vestida de bruxa, meias de abóbora e chapéu. Eu não me lembro o que você era mas com toda a certeza era tão desinteressante quanto. Todo outubro eu me recordo de me sentar com você na escadaria naquela noite fria, e rir até a minha barriga doer.
E nessa mesma tarde, você me conta como se lembra de mim toda a vez que ouve as músicas que eu compartilho, quando raramente entra no seu Letterboxd, e quando assiste premiações de filmes e vê a atriz que eu sempre admirei — a que atuou em um filme longo e entediante que você me forçou a assistir uma tarde, e nós planejamos nos ver em Julho, você vai entrar de férias da faculdade, ela anda indo muito bem apesar de ser trabalhosa, quem sabe você volta pra sua cidade, quem sabe eu tenha coragem de ir dessa vez. A gente é tão criança nesse exato momento. Nossa forma corporal se torna a da puberdade em estado avançado, quando tudo que a gente mais desejava era sair daquele colégio militar. Nós falamos a mesma língua, e você não se importa que a minha ocupe mais espaço que a sua. Pra sempre meu fantasma altruísta. Em todos os amigos eu vou encontrar você, de novo e de novo, em cada uma das minhas reencarnações.
Eu precisei me esconder de mim mesma, e acabei por cair de cara comigo, agora presa, mas ainda tão exausta. Tão cansada das longas discussões, da farsa, do esconderijo, da prisão, da vergonha, do medo, de dizer: ‘eu ando muito bem, sim, obrigada’. Acho que foi por isso que a baleia me engoliu. Eu já andava em decomposição antes mesmo de virar comida pra peixe. Eu quero sair da barriga dessa baleia, me sentar em sua pele gélida e observar os satélites nesta madrugada, pelo tempo que for possível. Eu quero existir, e quero que você não se torne um estranho. E quero ser alguém que costumava ser algo.
Lara, não tenho palavras pra descrever o quanto eu amo tudo o que você escreve. você não tem medo da folha em branco, de contar as coisas como elas são, mesmo que não seja o que a maioria das pessoas gostaria de escutar. você escreve com verdade e se expressa mais do que bem. no momento em que vivemos, onde tudo é feito de maneira extremamente padronizada e sem alma, sua escrita é um respiro e uma luz no fim desse túnel opaco e sem graça. sei que não preciso nem dizer pra continuar assim, pois essa é a sua essência e vem mais do que naturalmente sempre.
Que perfeição de escrita Lara! Que poético e sincero esse espaço que é A Baleia. Achei incrível!